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Gente de Opinião

Lúcio Flávio Pinto

A guerra dos coronéis


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A política sempre foi bipolarizada no Pará. A república fecundou o antagonismo visceral entre o lemismo, do intendente de Belém, Antonio Lemos, e o laurismo, do governador e senador Lauro Sodré. A revolução de 1930 gerou o baratismo e o antibaratismo.

O radicalismo que se formou em torno da figura do “tenente” Magalhães Barata mostra a força do seu carisma e da sua liderança – e também a virulência dos que se opunham a ele, os “coligados”.

O golpe militar de 1964 jogou na arena política o tenente-coronel Jarbas Passarinho e o major Alacid Nunes, que avançaram um posto ao passar para a reserva, conforme a regra então vigente na carreira (abolida logo depois).

Com atividade intelectual intensa desde a juventude, Passarinho já era um “anfíbio”, com um pé no quartel e outro na política desde muito cedo. Foi um dos legionários da UDN na sua pregação contra a corrupção no governo e no ataque a Getúlio e seus seguidores. Conseguira destaque na falange liderada por Carlos Lacerda.

Era um dos conspiradores no quartel-general da 8ª Região Militar, atuando no estado-maior. Natural que com a derrubada do governador “baratista” Aurélio do Carmo, três meses depois da derrubada do presidente João Goulart, fosse o candidato natural a substituí-lo.

DE CORONEL A GOVERNADOR

Como a eleição seria pela via indireta, através de um colégio eleitoral diminuto (os deputados estaduais) e o PSD de Barata ainda era o partido mais forte, Passarinho negociou nos bastidores com integrantes da equipe de Aurélio, conseguindo o apoio dos pessedistas para se tornar governador do Estado. Tornou-se o homem forte da política.

Alacid estava num cargo burocrático inferior, na circunscrição do alistamento militar, mas foi chamado para presidir um dos IPMs, os terríveis Inquéritos Policiais Militares, que se multiplicaram na fase inicial da repressão ao antigo regime.

Coube-lhe ouvir estudantes acusados de subversão. Alacid tinha experiência como chefe de polícia no então território federal do Amapá (também foi governador interinamente, quando o controverso titular, o pernambucano José de Moura Cavalcanti, renunciou). Criou então a fama de homem mau, truculento. Tinha respaldo poderoso: do marechal Cordeiro de Farias.

A RIVALIDADE COM ALACID

Essa origem explicava o mal estar disfarçado entre os dois maiores políticos derivados da intervenção pela força dos militares na atividade civil. Cordeiro de Farias, que foi também “tenente” e participou da Coluna Prestes, se tornou um dos mais influentes “anfíbios” do Brasil.

Sua atividade política o aproximou do primeiro presidente pós-64, o marechal Castelo Branco. Subiu com ele e os ideólogos da Sorbonne (como a Escola Superior de Guerra, ninho de conspirações, era tratada) ao topo do poder.

Alacid era um dos protegidos de Cordeiro, que mexeu seus pauzinhos para encontrar um lugar para o afilhado. Certamente Passarinho aprovou o nome do colega, por ser quem era e por quem o endossava, apesar de não serem afinadas as relações entre eles.

Mas teria preferido um civil, talvez, dentre outros motivos, para não criar sombra ou ela vir a ser uma fonte de divergência, que contestaria sua ascendência.

Um primeiro conflito surgiu quando Alacid se tornou o candidato da situação à sucessão de Passarinho, em 1965, na última eleição direta para governador até 1982. Jarbas soube que Gilberto Mestrinho, ex-governador do Amazonas cassado por alegada corrupção, estaria na ponta de um novelo que iria fornecer dinheiro para a campanha de Alacid. Era uma contradição flagrante, que dava cobertura a um esquema empresarial e político combatido pelos novos centuriões.

Cobrado, Alacid se explicou: o dinheiro era necessário para comprar os bois. Era uma prática arraigada alimentar (além de transportar) os eleitores de cabresto, aqueles que votavam tangidos por cabos eleitorais.

Mas não era só para a comida que havia a irrigação: era também para manter o jornal O Liberal, até então o porta-voz dos “baratistas”, que daria suporte à candidatura, numa complicada operação de camuflagem do seu financiamento.

À aproximação política de Jarbas Passarinho dos execrados “baratistas”, semelhante à de Castelo Branco, intermediada pelo ex-presidente Juscelino Kubitscheck, para a conquista dos votos necessários no parlamento, em troca de compromissos jamais cumpridos, foi agravada pela vinculação financeira de Alacid a Mestrinho, notabilizado pelo romancista – também amazonense – Márcio Souza como o boto tucuxi. Era a rotina da promiscuidade entre políticos e empresários que emergiu nos escândalos do petrolão e do mensalão, na sua forma mais gravosa.

Quando já rompera com Alacid e estavam em posições de combate, Passarinho encaminhou uma carta aos comandantes das três forças armadas em Belém relatando esses fatos para demonstrar que o choque era antigo e não envolvia apenas uma disputa paroquial pelo poder. Haveria divergências doutrinárias e morais.

No seu primeiro governo (1966-71), Alacid teria beneficiado o grupo João Santos com isenção dirigida de imposto. Ao deixar o cargo, assumiu a direção da empresa em Belém, novamente por indicação de Cordeiro de Farias, que ocupava cargo na direção nacional da corporação.

Alacid nunca deu o troco. Fez do silêncio, da organização de um grupo de aliados fieis e de intensas atividades de bastidores suas armas para enfrentar o ex-companheiro e correligionário. Essa estratégia recompôs, mutatis mutandi, o antagonismo entre o laurismo e o lemismo.

MODELO DO PASSADO

Lauro Sodré se projetou nacionalmente, chegando a ser cogitado para a presidência da república. Mas essa presença constante na capital federal, que era o Rio de Janeiro, o distanciou perigosamente da sua base eleitoral, cultivada com aplicação disciplinada e competente por Antonio Lemos, um típico político local, como Alacid.

Passarinho, que foi três vezes ministro durante o regime militar (mais uma sob Collor de Mello) e um dos maiores tribunos do senado, chegou a ser cogitado para ocupar o Palácio do Planalto, mas lhe faltava uma condição essencial: ser general de quatro estrelas. Enquanto contou com o suporte de Brasília, Passarinho usou o poder federal para conter o expansionismo de Alacid. Mas a democratização lhe foi fatal.

Com o inacreditável governo do general João Figueiredo, um literal epílogo das duas décadas de poder militar, a posição de Passarinho se enfraqueceu. Alacid aproveitou para se aliar ao líder da oposição, o deputado federal Jader Barbalho, que acabaria vencendo o candidato do regime, o médico e empresário Oziel Carneiro.

Por ironia, Alacid, que foi o último governador eleito pelo voto direto do Pará no início da ditadura, 17 anos depois ajudou a vitória da oposição ao regime que o colocara na política, aonde ele não chegaria de outro modo.

Essa traição aos seus pares seria premiada com a quase imediata traição de Jader, que precisava se livrar do aliado para poder iniciar um novo capítulo na bipolaridade paraense: o jaderismo e o antijaderismo.

Novamente o retorno do centralismo de um caudilho, que não possibilita a formação de uma oposição à altura. Desta vez, porém, menos porque Jader chegou à altura de Barata e mais porque as lideranças no Estado entraram na fase da mediocridade doentia.

Alacid da Silva Nunes fez o concurso de admissão e não passou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme. Sua última promoção na carreira foi a major, quando tinha 35 anos, em 1959. Jarbas Passarinho conquistou a patente de major aos 33 anos e a de tenente-coronel aos 42 anos, em 1962, quando, ironicamente, o presidente (comandante-em-chefe das forças armadas) era João Goulart, que ajudaria a derrubar em 1964.

O MILITAR

Passarinho (nascido acreano, se transferiu para Belém quando tinha três anos, com a família) foi um dos redatores da revista da Escola Militar de Realengo, da qual foi o orador oficial e presidente da Sociedade Acadêmica Militar, dois anos depois do seu ingresso no estabelecimento.

Oficial da arma da cavalaria, foi instrutor do CPOR em Belém com 23 anos e, dois anos depois, exerceu a mesma função na escola militar de Resende, no Rio. Aos 30 anos, foi instrutor e comandante do curso de bateria da Academia Militar das Agulhas Negras.

Já na Eceme, preparando-se para ser oficial superior, foi, durante dois anos, redator-chefe da Revista do Clube Militar e seu diretor. Aos 42 anos, como tenente-coronel, chefiou o estado-maior do Comando Militar da Amazônia e da 8ª Região militar, de onde saiu para o governo do Pará.

Os currículos de Jarbas e Alacid são contrastantes nas atividades intelectuais e políticas antes de 1964, o brilho do primeiro ofuscando completamente a ausência de feitos nesse setor do segundo. Esse desnível é público e notório.

Mas se Jarbas tinha todos os motivos para se julgar superior em intelecto sobre seu oponente, Alacid nunca passou recibo dessa superioridade. Foi mais eficiente na política, acabando por derrotar o rival.

O que influiu nas relações entre os dois foi a circunstância de que Alacid só ascendeu ao oficialato superior pelo ato misericordioso da promoção automática quando da reforma. O major ficou estigmatizado por essa diferença ao ser reprovado no exame para a Eceme, enquanto Passarinho foi aluno brilhante também nessa modalidade.

Só recentemente Alacid manifestou a intenção (a meu ver apenas especulativa) de ditar suas memórias para tentar um contracanto à profusa divulgação das versões do seu ex-camarada. Mas a morte o surpreendeu, no dia 5, em plena forma, aos 91 anos. Jarbas ainda vive, aos 95, mas sua vida ativa se encerrou. Não haverá mais um duelo entre os dois personagens. Mas seria bom para todos que alguém se encarregasse de escrever imparcialmente suas histórias.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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