Terça-feira, 23 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Frei Betto

O QUE É TER FÉ


Frei Betto
 

     Todos conhecemos pessoas que frequentam a igreja e, no entanto, se comportam de modo contrário aos valores evangélicos: tratam subalternos com desrespeito; sonegam direitos de empregados; discriminam por razões raciais ou sexuais.

     Pessoas que enchem a boca de Deus e trazem o coração entupido de ira, inveja, soberba; são indiferentes aos direitos dos pobres; omitem-se em situações graves que lhes exigem solidariedade.

     E temos à nossa volta, no círculo de amizades, pessoas ateias ou agnósticas que, em suas atitudes, transparecem tudo o que o Evangelho acentua como valores: amor ao próximo, justiça aos excluídos, solidariedade aos necessitados, partilha de bens etc.

     O Catecismo da Igreja Católica, aprovado por João Paulo II, em 1992, e elaborado sob a supervisão do téologo Ratzinger, futuro papa Bento XVI, define a fé como “adesão pessoal do homem a Deus”. E acrescenta que é “o assentimento livre de toda a verdade que Deus revelou.” E a portadora dessa verdade é a Igreja.

      Assim, só teria verdadeira fé cristã quem submete seu entendimento ao que ensina a autoridade eclesiástica (papa, bispos e pastores).

     Devido a essa maneira de entender a fé, o que se crê se tornou mais importante do que como se vive. Criou-se uma ruptura entre fé e vida. A ponto de pesquisa na França, ao indagar a diferença entre um empresário sem religião e outro cristão, a maioria apontou um único detalhe: o segundo vai à missa de vez em quando. No resto, em nada diferem...

     Para Jesus, quem tinha fé? A resposta é desconcertante. Em Mateus 8, 10, Jesus declara que o homem com mais fé que até então havia encontrado era um oficial romano, um centurião.

     Ora, como Jesus pôde elogiar a fé de um oficial pagão? O episódio demonstra que, para Jesus, a fé não consiste, em primeiro lugar, naquilo que se crê, e sim no modo de proceder. Aquele pagão era um homem sensível, solidário, preocupado com o sofrimento de um servo.

     A mesma atitude de Jesus se repete no caso da mulher cananeia, que também era pagã. A mulher pede a Jesus que lhe cure a filha. Diante dela, Jesus reconhece: “Mulher, grande é a sua fé!” (Mateus 15, 28). Grande, não por causa da crença da mulher, e sim por seu procedimento amoroso. 

O mesmo ocorre no caso do samaritano hanseniano, curado em companhia de nove judeus (Lucas17, 11-19). Os judeus, segundo suas crenças religiosas, se apresentaram aos sacerdotes, como recomendou Jesus. Já o samaritano, que não obedecia às prescrições das autoridades religiosas e não se sentia obrigado a submeter-se a elas, retornou para agradecer a Jesus, que lhe exaltou a fé: “A sua fé o salvou” (Lucas17, 19).

     Para Jesus, portanto, a fé, antes de se vincular a um catálogo de crenças, a uma doutrina, se relaciona a um modo de viver e agir.

     Jesus, por vezes, duvidou da fé de quem estava mais próximo dele (Marcos 4, 40). Discípulos e apóstolos foram considerados “homens de pouca fé” (Mateus 8, 26).

     Jesus fez a desconcertante afirmação de que prostitutas e cobradores de impostos terão precedência no Reino de Deus, e não os “exemplares” sacerdotes (Mateus 21, 31).

     Isso deixa claro quem Jesus reconhecia como crente. Não propriamente quem aceita o que prega a religião, e sim quem age por amor, solidariedade e justiça, como o bom samaritano (Lucas 10, 29-37).

     Ter fé é, sobretudo, viver de acordo com os valores segundo os quais vivia Jesus.

     A Igreja está em crise. Suas autoridades culpam o laicismo, o relativismo, o hedonismo. Ora, será que as autoridades religiosas, e nós, frades, freiras, padres e pastores, não temos culpa nisso, por apresentar a fé cristã como verdades cristalizadas em doutrina, e não expressada em vivência?

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

 Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via [email protected]

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoTerça-feira, 23 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Esquerda, o resgate do sonho

Esquerda, o resgate do sonho

         Pertenço à geração que teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei da Vela, manifestações estudanti

Democracia e valores evangélicos

Democracia e valores evangélicos

       No tempo de Jesus, a questão da democracia já estava posta, porém apenas em uma região distante da Palestina: a Grécia. Dominada pelo Impér

Pergunte à história

Pergunte à história

Eleitores nem sempre votam com a razão. Muitos votam com a emoção.

O cardeal eletricista

O cardeal eletricista

O cardeal polonês, de 55 anos, é o principal assessor do papa

Gente de Opinião Terça-feira, 23 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)