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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (III Parte)


 Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (III Parte) - Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva (*),
Porto Alegre, RS, 05 de maio de 2015

Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos, na obra de Esther de Viveiros, relatos pessoais, ditados na primeira pessoa, que não nos cabe, como pesquisador, nada acrescentar, nada a retocar, pois foi o próprio Rondon que ditou à jornalista e escritora, pouco antes de falecer, sua história que foi consolidada, mais tarde, no livro Rondon conta sua vida. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivência contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a nação resolveu materializar sua grandeza batizando um estado brasileiro com seu nome ‒ Rondônia.

A Enfermidade e o “Abacaxi”

Minha saúde não era, porém, boa e, nesse ano de 1885, baixei frequentemente à enfermaria, com perturbações gastrintestinais ‒ consequência talvez do excesso de trabalho, logo depois das refeições, ou da avitaminose causada pelas deficiências alimentares anteriores ‒ pão e feijão, exclusivamente, constituíram, durante muito tempo, minhas refeições. Em junho, quando descia da 2ª Companhia para uma aula de Benjamin Constant, senti-me tão mal que caí sem sentidos, rolando a escada. Só dei acordo de mim quando já em casa de um colega mato-grossense que não consentiu em me ver baixar à enfermaria, sem o carinho especial com que desejava cuidar-me. Era esse colega meu grande amigo Jorge Otaviano da Silva Pereira. Com ele vivia meu conterrâneo, Manoel Fontoura, que me testemunhava especial apreço.

Chamava-se a “república” dos dois, situada na Rua Dona Merenciana, travessa da Rua da Passagem, à direita de quem vai para o túnel novo, “República do Fontoura”. Nos cuidados que me dispensava, era Jorge Otaviano auxiliado por Fontoura e assim, tratado com todo o carinho e entregue ao zelo clínico do Dr. Brancante, médico em Botafogo, ia me deixando ficar. Passava horas e horas sozinho, enquanto meus amigos iam para a Escola Militar. Meu estado de fraqueza não me permitia esforço intelectual. Punha-me a contar as tábuas do teto, ou as manchas da parede... e meus olhos aos poucos se fechavam... Via-me então junto de um Rio que brotava no fundo de uma grota e, volumoso, se despenhava num salto, ao lhe fugir o leito, em cachões de espuma, envoltos num véu de gotas irisadas pelo Sol. Sentia o frescor dessa espuma e, em imaginação, com ela me lançava ao Rio, a nadar em braçadas vigorosas... E quando chegavam os amigos, dizia eu:

‒  Que vontade de tomar banho de cachoeira!

[...] Agravava-se meu estado, dia a dia. Perdi forças e emagreci, a ponto de ficar reduzido a “pele e osso”. Meus colegas visitavam-me com frequência, mas, informados por Jorge Otaviano de que o Dr. Brancante considerava desesperador o meu estado, decidiram que fosse um grupo prestar homenagem ao enfermo. Voltaram desolados. Não havia dúvida de que minha “brilhante” existência, segundo diziam eles, terminaria antes de realizadas as fagueiras esperanças dos que em mim confiavam. Seria eu fugaz meteoro. Consternados, resolveram promover uma subscrição ‒ para o enterro ‒ praxe da Escola Militar, em relação aos alunos pobres. Mas houve sempre em minha vida muito imprevisto extraordinário. Chamei, certo dia, Jorge Otaviano e Fontoura:

‒  Estou com muita vontade de comer abacaxi, disse-lhes.

Os amigos trocaram um olhar, receosos de que eu estivesse delirando.

‒  Façam-me a vontade. É a única cousa que me apetece.

Encontraram uma evasiva:

‒  Vamos perguntar ao Dr. Brancante. Devemos, entretanto, prevenir a você que não é provável o consentimento dele ‒ Você nada suporta, além do bismuto. Veio o Dr. Brancante ver o seu doente no dia seguinte.

‒  Perguntem ao Dr. Brancante se posso comer abacaxi, pedi-lhes.

Os amigos explicaram ao médico o meu desejo. O Dr. Brancante deu de ombros e teve um olhar de quem pensa: para que contrariá-lo, se nada mais há a fazer! Compraram abacaxi e, cortado em pedacinhos, tiradas as partes duras, me foi ele apresentado. Saboreei-o com delícia, com intenso prazer. Depois dormi ‒ um sono de criança. Quando despertei, era como se vida nova me tivesse sido instilada. Espreguicei-me com largo gesto de bem estar e declarei:

‒  Sinto-me tão bem! Vocês vão me dar sempre abacaxi ‒ e depois uvas...

‒  Mais devagar, o abuso poderia prejudicar tão surpreendente melhora.

Dois dias depois veio o Dr. Brancante e constatou, boquiaberto, a maravilhosa reação, a verdade do que diziam meus amigos: “está restabelecido”. Suspendeu toda medicação, prescrevendo dieta de frutas e alimentos leves. E assim rapidamente me refiz. (VIVEIROS)

A Primeira “Bomba”

Pensei então em reaver o tempo perdido. Estávamos em dezembro. Queria fazer exames vagos, apesar das ponderações dos amigos:

‒  Pois se você chegou a ponto de não mais saber ler!

‒  Mas já voltei ao meu estado normal e estava adiantadíssimo meu estudo de Matemática. Espero, pois, poder vencer.

E requeri exame vago de Química. Entretanto, traíram-me as forças, o físico não obedeceu ao comando do cérebro e perdi os sentidos na ocasião da prova. O exame fora requerido e assim forçoso me foi levar minha única bomba.

Não foi, entretanto, levada esta em conta, quanto ao título-prêmio de Alferes aluno, uma vez que, não tendo eu sido arguido, não houvera exame. Perdi o ano, mas não fui desligado da Escola. Fez o Coronel Costalat questão que assim fosse, embora contrariando as normas estabelecidas, em vista de minha excepcional classificação. (VIVEIROS)Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (III Parte) - Gente de Opinião

Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (III Parte) - Gente de Opinião

O “Explicador”

Em 1886, foi o 2° ano cursado com a maior facilidade, pois, quando adoeci, em junho do ano anterior, já estava senhor de quase toda a matéria. Tornei-me, por isso, o “explicador” dos companheiros mais atrasados, varando às vezes noite adentro, para lhes ensinar o ponto sorteado. Cuidava, ao mesmo tempo, de minha colaboração na revista “Família Acadêmica”, com Lauro Muller(foto direita), Euclydes da Cunha (foto esquerda), Moreira Guimarães, Gomes de Castro e muitos outros. Fortalecia-me e engordava,como um urso,depois de longa invernada, sempre interessado em minha função de Professor de vários colegas. (VIVEIROS)

Dona Chiquita

Em fevereiro desse mesmo ano, tomei parte nos exercícios da Escola Militar, realizados no espaçoso terreno situado em frente à mesma. Pelos meus amigos, Antônio e Alexandre Vieira Leal, foi o Dr. Xavier convidado para, com sua família, assistir aos exercícios. Eram meus amigos filhos do Dr. Antônio Henrique Leal, Diretor do Colégio Pedro II, de que era o Dr. Xavier Professor. Muito amigos da família Xavier e meus, haviam os dois contado a minha história, com todas as minúcias e pediram, nesse dia, permissão para me apresentar ‒ ao que prontamente acedeu o Dr. Xavier, interessado, como bom Professor que era, por um rapaz que diziam tão estudioso. Em um dos intervalos, foram os Leais me buscar.

‒  Apresentar-me à família do Dr. Xavier! Pois vocês não sabem que sou “bicho do mato”, que só sei lidar com livros e, a não ser o de meus companheiros, qualquer contato me faz morrer de acanhamento!

‒  Mas você não nos vai deixar mal! Já prometemos levá-lo à presença do Dr. Xavier.

Muito a contragosto, acompanhei os amigos.

‒  É este o melhor aluno da Escola, foi a apresentação feita por Alexandre.

Acolheram-me muito gentilmente Dr. Xavier, D. Teresa, sua esposa, e as Senhorinhas Teresita e Chiquita, suas filhas. Manteve-se em silêncio, ante a cordialidade com que foi recebido, empertigado como se estivesse em forma. Depois fugiu, eclipsou-se, tal foi o comentário de Chiquita aos meus amigos. É que eu a ouvira dizer à irmã: “Como é gordo!” Não lhe passava pela mente que viria a amar aquele tímido e gordo aluno da Escola Militar, que acabava de conhecer, com todos os extremos de seu nobre coração, a ponto de, já no fim da vida, repetir frequentemente que preferia sobreviver-me, para que me fosse poupada a dor da separação, para que nunca me visse privado de seus ternos cuidados. (VIVEIROS)

Sangue na Guelra

Matriculava-me, em 1887, no 3° ano da Escola, onde, além do estudo das outras disciplinas, completaria o de Matemática Superior com Mecânica Racional, ensinada pelo Coronel Manoel Cursino Peixoto Amarante, Comandante do Corpo de Alunos. Havia na turma dois alunos cuja nota habitual era “distinção grau 10”, em primeiro lugar, eu, e, em segundo lugar, Aníbal Cardoso, irmão de Licínio Cardoso, que cursara a Escola Politécnica nos anos correspondentes à Escola Militar e pedira transferência para esta. Em uma sabatina foi-nos dada para ser resolvida, entre outras, uma questão simples cuja solução poderia ser encontrada por meio de cálculo aritmético. Mas, vaincre sans peril seria triompher sans gloire. (VIVEIROS)

À vaincre sans peril, on triompher sans gloire: Quando se vence sem perigo, triunfa-se sem glória ‒ verso de Pierre Corneille em El Cid. (Hiram Reis)

Preferi, pois, exprimir o problema por uma equação diferencial e, integrando-a, encontrar a solução. Ao dar os resultados da sabatina, anunciou o Coronel Amarante: ‒ Distinção grau 10: em 1° lugar Aníbal Cardoso e, em 2° lugar, Cândido Mariano da Silva. E, dirigindo-se a mim:

‒  Não foi desta vez seu o 1° lugar, porque, para uma simples questão aritmética, embrenhou-se o senhor nas complicadas dificuldades de cálculo diferencial e integral.

Eram sempre muito vivas minhas emoções ‒ e a válvula de segurança eram, frequentemente, as lágrimas. Não disse palavra, mas os olhos se me marejaram. Na sabatina seguinte, entregava eu a prova em branco. Interpelado, respondi ao Coronel Amarante que não mais faria sabatinas.

‒  Mas vai o senhor perder o ano! ‒ Reprove-me... se puder.

E a média pôs-se a descer, uma vez que a nota era adicionada à da sabatina e dividido o total por dois ‒ ora, em branco, a nota da sabatina era zero. De 10 passei, pois, para 5 e, na última sabatina, desci a zero. Não era permitido entrar em exame com zero ‒ mas o Coronel Amarante restabeleceu a nota que sempre fora a minha: 10. Para assistir ao meu exame ‒ verdadeiramente exame vago ‒ convidou o Coronel Amarante o Comandante da Escola, mas este acabou por se retirar, ante minha atitude agressiva. Ferido ainda pela lembrança do 2° lugar, classificação que considerava injusta, espicaçado pelas perguntas fora do ponto, quebrava o giz e, observando-me o Coronel Amarante que deveria alinhar melhor os algarismos, retruquei:

‒  Peço licença para lembrar que não é de Aritmética o exame que estou fazendo.

O Major Antão, repetidor que fazia parte da mesa examinadora, pediu permissão para me arguir, quando o Coronel Amarante me mandou sentar. Prosseguiu o exame vago, conservando eu a mesma atitude provocativa. Observado sobre a redação de um enunciado, respondi, ainda uma vez, desabridamente.

‒  Não é de Português o meu exame.

A prova fora excepcionalmente brilhante e o Coronel Amarante bateu-se para que fosse 10 a nota. Mas os seus companheiros de mesa a isso se opuseram: que o moço precisava ser punido por sua atitude de indisciplina, e que prisão de alguns dias não seria punição para ele, e sim a perda do lugar que sempre mantivera.

Chamou-me então o Coronel Amarante ao seu gabinete e soube tocar-me as fibras mais delicadas do coração. Como quando fora classificado em segundo lugar, a resposta foram lágrimas insopitáveis que me rolaram pela face impassível... mas eram estas bem diferentes das primeiras... E por isso, minha nota foi, naquele ano, “9,5”, embora a prova escrita fosse considerada n° 1, e o Coronel Amarante, chamando a atenção para meu esforço excepcional, concluísse:

‒  Nós, quando alunos, também fomos assim, com sangue na guelra... (VIVEIROS)

Fonte: VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.


(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);

Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: [email protected];

Blog: desafiandooriomar.blogspot.com.br

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