Quinta-feira, 18 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (II Parte)


Hiram Reis e Silva (*), Porto Alegre, RS, 03 de maio de 2015

Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos, na obra de Esther de Viveiros, relatos pessoais, ditados na primeira pessoa, que não nos cabe, como pesquisador, nada acrescentar, nada a retocar, pois foi o próprio Rondon que ditou à jornalista e escritora, pouco antes de falecer, sua história que foi consolidada, mais tarde, no livro Rondon conta sua vida. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivência contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a nação resolveu materializar sua grandeza batizando um estado brasileiro com seu nome ‒ Rondônia.

Soldado

Poucos dias, apenas, depois de ter terminado meu curso no Liceu Cuiabano, era eu soldado do 3° Regimento de Artilharia a cavalo, com praça verificada a 26 de novembro de 1881, no Quartel do antigo acampamento Couto de Magalhães, em Cuiabá, e com destino à Escola Militar da Praia Vermelha. Para isso requeri, previamente, licença para nela me matricular. Embarquei a 2 de dezembro desse mesmo ano de 1881, com destino ao Rio de Janeiro, aonde cheguei a 31.

Fui então mandado adir (agregar) ao 2° Regimento de Artilharia a cavalo, em que iniciei a instrução de recruta, e incluído na 4ª Bateria do Regimento, sob o comando do então Capitão Hermes da Fonseca, com o soldo de 3$160. Não tardou muito, porém, que reconhecessem em mim preparo acima daquelas funções e, como eu tinha boa letra, fui designado para o cargo de amanuense da secretaria do Regimento. Tendo, mais tarde, o Quartel Mestre General requisitado uma praça, graduada ou não, para o cargo de amanuense, fui eu designado. Vinha a pé de São Cristóvão ao Quartel-General ‒ mas, ao chegar à esquina da praça, comprava pé-de-moleque a uma baiana. Sacudindo os balangandãs e mostrando os dentes alvos, em bondoso sorriso, oferecia ela gostosas guloseimas, ativando, de vez em quando, as brasas em que assava os beijus. (VIVEIROS)

Amanuense: encarregado de copiar textos à mão. Vulgarmente se considerava amanuense todo escriturário de repartição pública que manualmente registra documentos ou os copia. (Hiram Reis)

Muito me fazia sofrer o alojamento com os Cadetes. Minha vida de menino que só tinha um sonho ‒ estudar para bem servir sua Terra ‒ não me preparara para a convivência com rapazes de tão descabelada linguagem. Como amanuense do Quartel Mestre General, porém, poderia eu residir fora do alojamento. Desarranchado, passei a receber um soldo que me permitia pagar o aluguel do quarto e fazer as refeições em um frege-moscas... Vinha o bodegueiro, um gordo português, ler o cardápio ‒ deixava-o eu cantar a lista dos quitutes e invariavelmente pedia um prato de feijão... que comia com pão. (VIVEIROS)
 

Frege-moscas: local insalubre ou de pouco asseio. (Hiram Reis)

E assim vivia sem apuros. Arranjara um meio de poupar lavagem de roupa: usava um colarinho de celuloide na gola da farda irrepreensível, rigorosamente abotoada... para disfarçar a falta da camisa. Não eram válidos, para a matrícula nas Escolas Superiores do Rio, os exames do Liceu Cuiabano. Não me foi assim possível matricular-me na Escola Militar em 1882. Não desisti, entretanto, como meus colegas de Cuiabá, vindos ao Rio com o mesmo objetivo, que regressaram, convidando-me a que fizesse o mesmo. Mantive-me firme no propósito de contornar a dificuldade. Procurei imediatamente solução para esse novo problema e verifiquei que os exames, prestados na Instrução Pública, eram válidos para a Escola Militar. Inscrevi-me, pois, em 1883, em todos os exames do Externato Pedro II e cheguei a prestar os de Português e Geografia cujo lente, o Dr. Xavier ‒ que mais tarde viria a ser meu sogro ‒ me deu plenamente. (VIVEIROS)


Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (II Parte) - Gente de Opinião

Escola Militar

Choviam, entretanto, empenhos para que todas as praças, aprovadas no exame de admissão, que tivessem requerido matrícula na Escola Militar ‒ era esse o meu caso ‒ fossem admitidos como adidos à mesma Escola. O Ministro Carlos Afonso, o Afonsinho, como o chamavam, cedeu e assim, nós, 200 praças, fomos adidos à Escola Militar. Eram 200 novos alunos acrescentados à matrícula de 1883. Iniciei, pois, em 1883, meu curso de preparatórios, de três anos. Assim, só em 1886, no caso de ser sempre aprovado, poderia eu iniciar meu curso superior, para o qual trazia, do Liceu Cuiabano, todos os preparatórios necessários que só não poderiam ser aproveitados por não serem reconhecidos oficialmente.

Decidi, pois, cursar o 1° ano exigido pelo regulamento e requerer, no fim do ano, exame vago dos 2° e 3° anos. Meus companheiros ficaram estatelados ante minha audaciosa decisão.

‒  Bicho peludo! Pensas que com a Matemática de Cuiabá vais vencer! É muito atrevimento! Vais levar bomba, na certa!

‒  É possível, mas estou convencido de que sei e vou tentar.

E tentei. Com Matemática de Cuiabá, tirei eu, o “bicho peludo”, distinção no 1° ano e plenamente de 2° e 3° anos. Nunca se havia realizado tal façanha na Escola Militar cujo rigor era inquebrantável, mas, vencendo, habilitei-me a me matricular no curso superior, o que realmente fiz, em 1884. (VIVEIROS)

Vencer com Brilho

Era minha vida austera e afanosa. Não perdia um minuto, consagrando todo o meu tempo, toda a minha capacidade moral, intelectual e prática, ao objetivo único de vencer com brilho ‒ vencer para regressar a Cuiabá e, realizando o voto de meu Pai, servir à minha Terra. Nunca saí da Escola enquanto aluno. Não conhecia distrações a não ser os poucos momentos de cavaco (bate-papo) com os de “minha casa” ‒ como eram chamados os agrupamentos na Escola Militar. Constituíra eu a “minha casa” com Ovídio Abranches (Goiás) e Fileto Pires Ferreira (Piauí), aos quais se vinham agregar três maranhenses, os dois Leais e Serejo, este ainda mais casmurro do que o mato-grossense ‒ eu ‒ guardando silêncio todo o tempo. Veio Alexandre Leal juntar-se a nós, quando eu cursava o 2° ano, pedindo transferência da Escola de Marinha para a de Guerra. Já era eu amigo de Antônio Leal, seu irmão, e logo me liguei também a ele. Não tinha livros, porque não podia comprá-los. Minha atenção se fixava, por isso, a tal ponto, nas aulas de Matemática que, com o auxílio de algumas notas, a bem dizer estenografadas, conseguia recompor, integralmente, as preleções, quando voltava para a Companhia.

Minha vida era, entretanto, até certo ponto, vida à parte, porque nenhum dos companheiros suportava meu duro regime. Às quatro horas da manhã já estava de pé. Ia então tomar banho, na bica de José Justino, o porteiro da Escola. Era essa bica um filete de água que descia, veloz, o dorso do morro da Babilônia, a cantar em surdina, claro veio perfumado pelas folhas que viera beijando em caminho. E nessa água fresca me retemperava eu. O banho de Mar substituía, às vezes, o banho de bica, malgrado os tubarões. Ainda escuro, galgava a muralha e lançava-me ao Mar. Era um banho rápido, por causa da escassez do tempo. Uma boa fricção e, antes de 5, já estava eu sentado, trabalhando com afinco, à luz de um candeeiro de azeite de colza, enquanto os companheiros dormiam. Às seis horas, quando tocava “revista”, esfalfavam-se (fatigavam-se) eles para estar a postos; eu fechava calmamente a gaveta, punha em ordem os papéis e descia aprumado, com a correção que sempre procurei manter e apurar... mesmo quando circunstâncias pecuniárias me forçavam a andar sem camisa [...]. (VIVEIROS)

Colza ou couve-nabiça (Brassica napus): planta de cujas sementes se extrai o azeite de colza que também pode também ser utilizado na produção de biodiesel. (Hiram Reis)

E o dia seguia seu curso, distribuído em exercícios ‒ de cavalaria, infantaria, artilharia ‒ em aulas, em revistas, até 16 ou 17 horas. Logo depois do jantar, às 17 horas, ia estudar, o que muito concorreu para minha moléstia, em 1885. Não era possível fazer a digestão, pedindo ao cérebro tão intenso trabalho intelectual, principalmente a digestão de refeições pesadas, à base de feijão e carne seca, como eram as da Escola Militar daquele tempo. E estudava até 20 horas, sem interrupção, sem me deixar distrair, sem me deixar vencer pela fadiga. Estudava em meio ao barulho, abstraindo-me, porque meus companheiros, em torno de mim, eram, em grande parte, foliões. Mas às 23 horas, invariavelmente, já dormia, enquanto os companheiros, sonolentos, procuravam os livros, numa tentativa de recuperar o tempo, às vezes mal aproveitado [...] Dormia um sono calmo que nada perturbava ‒ prêmio dos que vivem plenamente, empenhados em que cada dia seja tão perfeito quanto possível, sem temor de sofrimento, sem aflição de viver; prêmio dos que procuram fazer da vida larga sementeira de altruísmo, com os olhos postos em um ideal [...]

Sesquicentenário do Nascimento de Rondon (II Parte) - Gente de Opinião

Cursei, em 1884, o 1° ano de infantaria e cavalaria ‒ o chamado “curso de alfafa” ‒ passando para o 2° ano, em que me matriculei em 1885. Deveria estudar, nesse mesmo ano, além de outras matérias, Matemática Superior: Cálculo Diferencial e Integral e Geometria Analítica. Era Professor da Cadeira Benjamin Constant Botelho de Magalhães, tendo como repetidor o Capitão Trompowski. Estudava com meu habitual ardor, alcançando 10 em todas as sabatinas, ansiando, além de tudo, o título de Alferes aluno. (VIVEIROS)

Fonte: VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);

Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: [email protected];

Blog: desafiandooriomar.blogspot.com.br

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 18 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Poder Civil Não Ekxiste

Poder Civil Não Ekxiste

Bagé, 16.04.2024Repercuto mais um belo e oportuno artigo de meu caro Amigo, Irmão e Mestre Higino Veiga Macedo.Poder Civil Não Ekxiste ([1])(Higino V

Terceira Margem – Parte DCCXXVIII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte IX

Terceira Margem – Parte DCCXXVIII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte IX

Bagé, 15.04.2024  Direito Internacional Privado e Aplicação de Seus Princípi

Terceira Margem – Parte DCCXXVII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte VIII

Terceira Margem – Parte DCCXXVII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte VIII

Bagé, 12.04.2024  O Imbróglio chamado “Prince of Wales”  Diário de Pernambuco

Terceira Margem – Parte DCCXXVI - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte VII

Terceira Margem – Parte DCCXXVI - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte VII

Bagé, 10.04.2024  Naufrágio do “Prince of Wales” (5 a 08.06.1861)  Diário do

Gente de Opinião Quinta-feira, 18 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)