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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Eu Robô? De quem? do fascismo


O Estado de Exceção, literalmente, robotiza as pessoas. No romance – depois filme – Eu Robô, a máquina se julga mais consciente do que o homem na avaliação político-institucional de seu Estado e, assim, resolve agir inibindo os espaços políticos de ação humana (Asimov, 2004).

Também é curiosa a lembrança de que muitos se julgam mais preparados – conscientes – do que a maioria e por isso se consideram no direito de decidir o que é melhor para os demais. Afinal, se os pais sabem o que é melhor para os filhos, os gênios ou príncipes da política pensam o mesmo em relação ao povo. Como temos visto no século XXI, alega-se eufemisticamente que para evitar o Golpe de Estado, decreta-se o Estado de Sítio.

Eu Robô? De quem? do fascismo - Gente de Opinião

Eu Robô – O Estado de Sítio Consciente

Este livro de Isaac Asimov, escrito em 1950, é um clássico contemporâneo da ficção que aos poucos se vê plasmado como realidade. Podemos ler o romance como se fosse uma História da Robótica — incluindo-se aí as três célebres leis da cibernética — ou como Sociologia da Ciência e da Tecnologia, sobretudo nos anos iniciais do século XXI. Neste sentido, como clássico do Século XX, na esteira da Sociologia da Ciência de Pierre Bourdieu[1], podemos destacar elementos mais pontuais, quer sejam políticos quer sejam sociais, como por exemplo:

  • p. 159 – A desesperança do sitiado: o horror irreal do pesadelo da vida social, em que se tornou o cotidiano;
  • p. 172 – A decretação do Estado de Emergência como escape ao Golpe de Estado, expediente tão em voga no curto século XXI.

Por outro lado, destaca-se a armadilha em que se enredou o chamado Estado Cientificista (Pisier, 2004) e a negação de direitos básicos. Neste caso, vemos confluir narrativas tradicionais do Estado apimentadas com a força das Metanarrativas do Capital: o capitalismo revela-se capaz de um aprendizado inesperado, assustador, como vemos pelo Google, em que o usuário é o trabalhador que alimenta os “buscadores”, com sua própria ação de pesquisar; empresas como Benetton e sua escola/núcleo de criatividade conquistando talentos pelo mundo todo.

A Ciência empresta seus recursos analíticos ao poder absolutista empregado atualmente no controle social, na figura do Estado Penal (Wacquant, 2003). O mesmo capital, outrora desbravador de mercados, agora por meio do aprender a aprender, consegue conjugar o poder sem adjetivos do Estado Hobbesiano com as redes/teias do rizoma presente nas tecnologias mais refinadas da telemática.

Seria representação ou realidade de um Evolucionismo Científico que, sem moral, direito ou ética que o acompanhe, sucumbe em mera reprodução do Darwinismo Social? O caso histórico mais sintomático, na leitura realista e crítica, destaca que Ausschwitz decorre de um antigo mito; o de que o Estado Prussiano representava a síntese da realização plena da racionalidade. Aprendemos com a ficção de Asimov como o humanismo está longe da Humanidade, nos dias atuais, agitados por intensa crise de civilização.

O homem quer ser humano

Esta ânsia pela virtus (virtualmente, queremos ser “humanos-menos-imperfeitos”) é a marca patente de um outro romance, O homem bicentenário, também de Isaac Asimov (considerado o melhor romance de ficção do autor, publicado em 1976). O robô bicentenário passa a vida lutando (inclusive judicialmente) para se tornar humano. Em sua perspectiva, tornar-se menos vulnerável, mais completo e mesmo sabendo que a humanidade lhe traria finitude e morte. De nossa parte, especialmente se desterrados ou sitiados, presos ou soltos, mas inconscientes, experimentamos a interface da vida (apenas como caminho da morte), sem experimentar a liberdade. Aliás, o robô sabia bem qual era o preço da liberdade:

Podia ser livre, mas no fundo tinha um programa muito minucioso em relação ao seu comportamento com as pessoas humanas e só ousava avançar com passos bem tímidos; retrocedia meses quando encontrava franca desaprovação. Nem todos aceitavam a liberdade de Andrew. Era incapaz de ficar ressentido com isso, e no entanto sentia certa dificuldade no seu processo de raciocínio quando pensava no assunto (Asimov, 1997, p. 31).

            Um preço que seria mais moderado se a inteligência social fosse menos instrumental (em alguns casos, sectária ou coercitiva) e mais criativa. O próprio robô, enquanto robô programado, ainda atado à programação típica e triunfal (como se fosse seu tipo de “razão instrumental”), também não notava de imediato que o caminho da liberdade vinha pela criação, ou seja, por sua total reprogramação: “— Está limitando o seu campo de ação – disse Paul, pensativo. — como artista plástico, toda concepção te pertence; como historiador, você lida principalmente com robôs; como biólogo de robôs, vai lidar apenas consigo mesmo” (Asimov, 1997, p. 57). Esse lidar consigo mesmo não é um apelo ou ameaça da consciência, do peso de se ver obrigado a carregar o fardo da condição humana?

Em estágio semelhante a nós, humanos, o robô precisaria adquirir uma consciência e uma inteligência interativa (literária): o robô deveria se afastar do cientificismo, do positivismo mecanicista e se aproximar das humanidades. O robô lutou para ser reconhecido como homem e em sua trajetória nos ensinou um pouco do que é preciso para vencer esse penoso e pesado processo de negações: “— Como que não vale a pena, se conseguir a minha condição humana? E, se não conseguir, vai acabar com toda essa luta e, portanto, também vale a pena” (Asimov, 1997, p. 80). O robô sagrou-se campeão na luta pela descoisificação:

— Há cinqüenta anos – disse o presidente diante de toda humanidade –, você foi proclamado o Robô Sesquicentenário, Andrew. – Fez uma pausa e depois, em tom mais solene, continuou: — Hoje nós o proclamamos Homem Bicentenário, Mr. Martin [...] Deitado na cama, Andrew aos poucos foi perdendo a consciência. Lutou desesperadamente para se manter lúcido. Homem! Era homem! Queria que fosse o seu último pensamento. Queria se desfazer – morrer – pensando nisso (Asimov, 1997, p. 31).

Andrew já era um humano mortal e não mais um simples robô infalível. Portanto, toda luta pelo reconhecimento é uma luta por enraizamento. Andrew lutou, assim como outros tantos milhões, contra a desfigurante modernidade tardia — Andrew não foi um robô-alegre como o que criticava C. W. Mills (1975), mas sim um robô-herói. Andrew foi o primeiro herói da pós-modernidade ou apenas um amante do humanismo. Tanto amou a humanidade que se propôs à finitude e à morte.

É tão estranha a relação política que podemos fazer entre a ficção e a consciência que perdemos na longa história do poder de exceção que, na rotina da robotização política não vemos mais surgir nenhuma ética. Na cultura nacional, por exemplo, o jeitinho brasileiro, como sinônimo de esperteza, tem o intuito de burlar a lei, a interpretação da normalidade, regularidade esperadas. Para os robôs, mesmo aqueles que determinaram o Estado de Sítio Consciente – para o nosso bem – há regras duras, impossíveis de serem violadas. Estas cláusulas pétreas morais Asimov as apelidou de Leis da Robótica:

·         Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano, ou, através de inação, permitir que um ser humano seja ferido.

·         Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.

·         Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Lei (CALIFE, in ASIMOV, 2004, p. 09 – grifos nossos)[2].

É certo que a cultura e as tradições são desafiadas constantemente, num ritmo nunca visto anteriormente em todo o mundo, mas no Brasil o descontrole dos significados é avassalador, preocupante. Por isso tudo, não é difícil pensar as razões de nossa política anormal:MORS TUA, VITA MEA.

Bibliografia

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.

______ Eu Robô. Ediouro, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo, Editora UNESP, 2004.

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociológica. 4ª ed. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1975.

PISIER, Evelyne. História das Idéias Políticas. Barueri : São Paulo, 2004.

WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Vinício Carrilho Martinez

Professor da Universidade Federal de São Carlos



[1]A luta científica é uma luta armada(2004, p. 32 – grifos nossos).

[2]Elas formam a programação básica dos robôs e qualquer tentativa de quebrá-las provoca o colapso total do cérebro robótico [...] o épico espacial Planeta Proibido, de 1958, inspirou [...] Jornada nas Estrelas e Perdidos no Espaço. Perdidos no Espaço estreou na televisão em 1965, na mesma época em que o cineasta Stanley Kubrick produziu o clássico 2001: uma odisseia no espaço [...] o escritor Arthur C. Clarke, amigo de Asimov, queria equipar a nave da Discovery com um Robô chamado Hugo, obediente às três Leis da Robótica [...] Clarke ficou entusiasmado com minha sugestão e escreveu 2010: uma odisseia no espaço 2, romance que virou filme, exorcizando Frankenstein e reprogramando HAL com as três leis do doutor Asimov [...] Outro exemplo de um artista influenciado pelo livro Eu, robô é George Lucas. Seus robôs R2D2 e C3PO, heróis da saga de Guerra nas Estrelas são claramente moldados de acordo com a fórmula asimoviana [...] Um dos primeiro robôs a ser comercializado é um humanoide de 1,20m criado pela empresa japonesa Honda e que recebeu, com muita justiça, o nome de Asimo [...] Ele morreu em abril de 1992, com 72 anos, deixando uma obra de 470 volumes sobre assuntos que vão de ciência a Shakespeare (CALIFE, in ASIMOV, 2004, pp. 10-12).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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