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Montezuma Cruz

Uma legenda na história da Amazônia Ocidental Brasileira


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MONTEZUMA CRUZ

Amazônias

Jerônimo Jerônimo Santana chegou ao velho Território Federal de Rondônia entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, procedente de Jataí (GO). Advogado formado em 1963 pela Universidade Federal de Minas Gerais, ele se ligou fortemente a esta terra no período em que a atividade garimpeira fora proibida por uma portaria do Ministério das Minas e Energia e a conservação ambiental não estava em pauta no Brasil;
 

Jerônimo Santana notabilizou-se no período em que técnicos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e do Ministério das Minas e Energia levavam o regime militar a acreditar que a extração manual da cassiterita em Rondônia era “prejudicial” à economia do País. A exploração mecanizada, diziam eles, resultaria em “maiores lucros”.
 

A cassiterita extraída no Estado do Amazonas passava por Rondônia na carroceria de caminhões, rumo à Usina Siderúrgica de Volta Redonda. Relatórios levados aos gabinetes dos chefes do DNPM, do Conselho de Segurança Nacional e da Presidência da República argumentavam que esse método de exploração do minério não recuperava a parte considerada perdida. “Era predatório”, decretavam. A bancada governista no Congresso Nacional fortalecia a medida. Surpreendentemente, a edição da portaria proibindo a lavra manualobrigou o Exército Brasileiro a apelar para a Força Aérea Brasileira (FAB). E assim, muitos homens solteiros foram levados de avião para outras regiões da Amazônia Brasileira.
 

Jerônimo Santana percebia os reflexos dessa situação, notadamente na política nacional, a qual acompanhava desde a sua militância no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (dissidência do Partido Comunista Brasileiro), antes de ingressar no Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
 

Assim, deparava-se com o ano da conquista do tricampeonato mundial de futebol, no México. Em 1970 houve eleição para a única vaga destinada a Rondônia no Congresso Nacional; o MDB outrora capenga fortalecera-se com tais medidas. O grande líder da oposição, general Joaquim Vicente Rondon, mantinha-se afastado. Membros da oposição debatiam-se procurando um nome de expressão que “topasse” enquadrar-se nas suas diretrizes partidárias. Então, escolheram Jerônimo. Três vezes: em 1970, 1974 e 1978.
 

Nesse aspecto, a história rondoniense se escreve com detalhes só debatidos em ambientes acadêmicos. Anteriormente, haviam apontado o professor Abnael Machado de Lima, o vereador Inácio Mendes (que editou o jornal “O Combate”), e o fazendeiro Walmi Dawis de Moraes. Nenhum deles aceitava. Moraes e Mendes não conseguiam o apoio da maioria do diretório oposicionista.
 

Deu-se o inusitado: Jerônimo nadou de braçadas, iniciando um notável movimento de massas em busca da abertura dos garimpos de cassiterita. Ao mesmo tem em que defendia a classe garimpeira, apoiava o enquadramento – considerado irregular – de servidores públicos por uma portaria federal e via a possibilidade deles serem indenizados, entretanto, isso não ocorreria.Uma legenda na história da Amazônia Ocidental Brasileira - Gente de Opinião
 

O governo territorial, até então majoritário em Rondônia, seja pela maioria de votos para deputado federal ou para vereadores nas duas únicas Câmaras Municipais existentes, em Porto Velho e Guajará-Mirim, amargou fragorosa derrota.
 

Em seu livro “No rastro dos pioneiros”, o ex-garimpeiro, vereador e deputado Amizael Silva recorda: “Lançado depois de uma briga intestina do Diretório da Arena, que preteria o deputado Paulo Nunes Leal, o seringalista Emanuel Pontes Pinto perderia o pleito. É natural que aquele episódio também contribuiu para o enfraquecimento do governo, até porque o Sr. Emanuel tornara-se um defensor intransigente da Portaria 195 que culminava com o fechamento dos garimpos manuais.”
 

Verdade é que a derrota situacionista num Território Federal demograficamente vazio influenciou os anos seguintes. Em 1972, nas eleições para vereadores, o governo perdeu de novo.
 

Podemos lembrar de Jerônimo advogado, prefeito e governador, porém, um dos seus maiores feitos no mandato de deputado federal foi relatar a Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário em 1977. A CPI da Terra, lavrada por esse corajoso integrante dos “autênticos” do MDB (frente que agregou diversas siglas, algumas até então proscritas) conseguiu 63 audiências públicas e igual número de depoimentos de religiosos, empresários, sociólogos, advogados, técnicos e de dois jornalistas.

O então deputado rondoniense abria o Plenário à defesa dos posseiros, feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

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Naquele período, a alardeadaconquista do Oeste” e o foco da reforma agrária apontavam para Rondônia, a Canaã brasileira. Famílias deixavam o Oeste do Paraná rumo aos projetos de colonização. Mesmo sem a garantia do título definitivo da terra, essas famílias abandonavam aquele estado, viajando de ônibus e caminhão durante pelo menos quatro dias. Antes de produzir, plantar, semear, lutar pelo crédito no banco e enfrentar a malária, “comiam” barro ou poeira na BR-364, a partir de Cuiabá.

Orientada por Jerônimo, a CPI da Terra fez brotar a semente da Justiça Agrária Brasileira e incentivou movimentos sociais no período em que o general presidente Ernesto Geisel promovia a conturbada abertura “lenta e gradual” no País. Vieram outras CPIs, nenhuma, porém, tão rica em apuração e credibilidade.

O parecer dos relatores, deputados Jerônimo Santana (MDB-RO) e Walber Guimarães (MDB-PR) foi publicado no “Diário do Congresso Nacional” em 30 de setembro de 1977, recebendo aprovação da maioria dos membros, à exceção do deputado Jorge Arbage (Arena-PA).

Acalorados discursos de Jerônimo, em defesa da posse da terra na Amazônia Ocidental Brasileira repousam nos arquivos hoje digitalizados da Câmara dos Deputados. Num deles, ao se referir ao Decreto nº 70.430/72, que determinava ao Incra a proteção aos posseiros, ele afirma: “Esse decreto é outra letra morta no contexto das medidas de amparo aos posseiros. No País inteiro não se vê a sua execução. O Departamento de Assistência Judiciária do Incra parece que não funciona. Em Rondônia e talvez no Acre não existe uma ação em favor dos posseiros. O Incra, às vezes, acenava lá com o colono, mas com a polícia dando razão ao grilo, omitindo-se, cruzando os braços para que o grileiro fizesse o que bem entendesse. (...) Recentemente eu trouxe ao conhecimento da Casa uma ação do Incra contra mais de 40 posseiros da região do Burareiro” (Ariquemes).
 

Jerônimo citava o então presidente do Incra, José Francisco de Moura Cavalcanti, para lembrar que a Amazônia “seria ocupada pela pata do boi.” Mesmo com a negativa do então do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), Hugo Almeida.
 

Almeida insistia com Jerônimo, na CPI da Terra, que a pecuária em áreas pioneiras “tinha a função de deflagrar o processo de atividade econômica”. “Não de desenvolvimento econômico – que deverá, imediatamente, ser complementado.”

O discurso da Sudam centrava-se no 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, do qual era parte o 2º Plano de Desenvolvimento da Amazônia.
 

Jerônimo, porém, não deixava passar o capítulo da grilagem e do oportunismo. Denunciava o desvio de dinheiro da Sudam para outras finalidades, inclusive para campanhas eleitorais, conforme constatava mais tarde o Poder Judiciário.
 

Em Rondônia, um dos casos mais conhecidos foi o da Agropecuária Santa Julia, de José Osmar Borges – ex-sócio do deputado e ex-senador e governador do Pará, Jader Barbalho (PMDB). Ele obteve 320 mil cruzeiros em 1972 para investir em pecuária extensiva numa área de 30 mil hectares, próxima a Porto Velho. Um ano depois tinha apenas um mil hectares formados com pastagem. Foi obrigado a paralisar o projeto, porque o título da terra era ilegal.
 

Houve novas tentativas, no Congresso Nacional, para se repetir o êxito daquela CPI executada em plena ditadura. Desde 2003, em Rondônia, cerca de 30 pessoas haviam sido torturadas e mortas e cerca de 40 desapareceram desde 1 999, em consequência de conflitos agrários.
 

O inevitável desmatamento prejudica a conservação da floresta, ainda há casos de escravidão em fazendas. No final de 1984, já no governo João Baptista de Oliveira Figueiredo e no fim da ditadura militar, anunciava-se oficialmente a emissão do milionésimo título de terra. O marketing presidencial mencionava que o País promovia “o maior programa de reforma agrária do mundo”. E essa reforma concedia lotes de 100 hectares à pessoa. No recém-nascido Estado de Rondônia, muitos lotes de colonos falidos por falta de recursos se transformaram em fazendas de endinheirados e bafejados pelo dinheiro de bancos estatais.
 

O relatório da CPI de Jerônimo recomendava a construção de escolas. Mais de três décadas depois, nos lugares onde não havia salas de aula, o ensino era ministrado por Escolas da Família Camponesa, até mesmo em casas de madeira e barracões. O atual governador de Rondônia, Confúcio Moura (PMDB), hoje constrói novas escolas rurais e em terras indígenas. No entanto, a malária matava e ainda mata na Amazônia.
 

Nunca mais houve CPI igual àquela. E pelo visto, nunca mais haverá.


 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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