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Frei Betto

O EDITADO E O INÉDITO


 

Frei Betto

Meu amigo Alfredo não entende por que continuo frade, crítico ao capitalismo e convencido de que verdade e palavra de Jesus coincidem.

Não cabe na cabeça dele minha opção de não formar uma família e ter “desperdiçado” as oportunidades que a vida me ofereceu de sucesso profissional como leigo.

Aos 22 anos fui assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa na montagem de “O rei da vela”, peça de Oswald de Andrade. Aprendi o ofício e fiquei tentado a dedicar-me de corpo e alma à direção teatral.

Aos 23, trabalhei como chefe de reportagem da “Folha da Tarde”, em São Paulo. E em 2004 renunciei à função de assessor especial da Presidência da República.

Segundo Alfredo, “tivesse cabeça, você não estaria enfiado em uma cela de convento, vivendo de minguados direitos autorais e eventuais palestras remuneradas.”

Embora Alfredo e eu sejamos amigos, há entre nós enorme diferença no modo de encarar a vida. Ele é alto executivo de uma empresa multinacional, tem um casal de filhos, possui fazenda e casa de praia, e adora passar temporadas em Nova York.

Em matéria de religião, ele cultiva um agnosticismo que não o impede de ser devoto de São Judas Tadeu e trazer no pescoço um cordão de ouro com a medalha de Nossa Senhora das Graças.

Repito sempre a Alfredo: “Você é um homem editado.” Devidamente moldado, como um boneco de gesso, pela cultura capitalista-consumista que respiramos.

Ele gosta de exibir roupas de grife, frequentar clubes sofisticados e restaurantes da moda, e trocar de carro a cada 15 mil km rodados.

Prefiro ser um homem inédito. Não invejo o estilo de vida de Alfredo, nem duvido de que ele seja feliz assim. Recuso-me, porém, a submeter-me aos “valores” do sistema que exalta a competividade, e não a solidariedade, e gera tanta desigualdade social.

Minha felicidade estaria em risco se eu me deixasse possuir por bens materiais que me exigiriam cuidados constantes. Minha existência não é norteada por status, finanças ou patrimônio. É o sentido solidário que imprimo à vida que me faz feliz. Nem me considero mais feliz que a média. Felicidade não se compara.

O poço no qual sacio a minha sede é aberto ao Transcendente. E me faz muito feliz não ter que me preocupar com bens materiais, pois nada possuo, exceto as roupas que visto, os livros que coleciono e um carro Fox básico que me foi presenteado.

Quem muito possui, muito tem a perder. Não é o meu caso. Meu bem mais precioso é também o de Alfredo e de todos nós – a vida. Sei que um dia haverei de perdê-la, como ocorre a todos. Alfredo fica horrorizado quando se toca neste tema. Ele quase se julga imortal. Porque terá muito a perder quando a morte chegar.

Esta diferença é marcante entre nós: o sentido que imprimo à minha vida justifica a minha morte. Não é o caso de meu amigo nem de homens e mulheres editados. Eles nutrem sempre a ambição de terem mais e mais. O necessário jamais é suficiente para eles. Não suportam a ideia de terem um futuro de quem mora de aluguel, anda de ônibus, e vai ao shopping apenas para ver as vitrines e tomar sorvete.

O homem e a mulher editados são aqueles que apostam tudo no sistema no qual vivem e acreditam. O homem e a mulher inéditos olham além do próprio umbigo e ficam indignados com tanta miséria e injustiça. Empenham suas vidas na busca de outros mundos possíveis. Acreditam em ideiais e utopia. E são felizes justamente por se sentirem como a cortiça na água, que nunca submerge. Por isso, raramente sofrem desilusões, temem o fracasso ou se enchem de medicamentos para evitar a baixa autoestima.

O homem inédito é apenas alguém que não se deixa editar por nenhuma força – política, econômica, religiosa – que insiste em fazer dele o que não é.

O homem e a mulher editados apreciam autoajuda. O homem e a mulher inéditos preferem a outroajuda.
 

Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.

http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.


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