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Frei Betto

Frei Betto: Quero Temer candidato para ele se dar conta de seu real lugar



A militância de Frei Betto começou bem cedo, aos 15 anos, em 1959, na cidade onde nasceu, Belo Horizonte. Era tempo da Juventude Estudantil Católica, braço da combativa Ação Católica. O esposamento formal da vida religiosa se deu em 1965, junto dos dominicanos, contrariando o desejo do pai.

Depois viria o engajamento na luta contra a ditadura militar pós-1964, o auxílio solidário a perseguidos de então, como Carlos Marighella, da ALN (Aliança Libertadora Nacional), defensor da luta armada e apontado como "inimigo número 1" daquele regime de exceção.

Por sua atuação social, acabou preso em duas ocasiões, a segunda, por quatro anos. "Todo verdadeiro cristão é um comunista sem o saber; todo verdadeiro comunista é um cristão sem o crer", assim justificou seu socialismo, outras vezes.

O frade privou da intimidade de grandes nomes da história até mundial, como Fidel Castro, líder da Revolução Cubana. Com depoimentos de Castro escreveu o livro "Fidel e a Religião", publicado primeiro em Cuba, em novembro de 1985. Sucesso editorial no mundo.

Esteve também junto de Luiz Inácio Lula da Silva desde os primeiros atos do movimento grevista dos metalúrgicos do ABC paulista e trabalhou no primeiro governo presidencial de Lula, do qual se desligou por discordâncias.

Entretanto, nunca mudou de lado: o dos mais pobres. "Ninguém escolhe ser pobre. Todo pobre é, de fato, um empobrecido", e assim afasta Deus, lembrando a raiz histórica da pobreza, não divina, na entrevista a seguir. Ele vive há anos num quarto de 5 m² num convento de São Paulo.

Ao UOL, por email, Frei Betto fala do assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco, no Rio, e afirma que as bandeiras que ela defendia, como os direitos dos mais pobres, dos negros e das mulheres, "terão, de cara, grande peso nas eleições deste ano".

Para as eleições de outubro, o religioso, hoje aos 73 anos e 60 livros publicados, gostaria de ver este desejo realizado: "Quero muito que Temer seja candidato. Para se dar conta de seu real lugar na história política do Brasil. E, sendo candidato, ele ajudará a dividir ainda mais os votos da direita, o que favorecerá a oposição".

UOL - O senhor é um religioso da ordem dominicana e tem apreço especial por parábolas bíblicas, sobretudo as do Cristo. Que parábola, antiga ou criada, poderia servir para dar conta do nosso momento atual no Brasil, com vistas a um encaminhamento para o diálogo?

Frei Betto - Sim, no ano passado publiquei, pela editora Vozes, "Parábolas de Jesus - Ética e Valores Universais". A parábola do Bom Samaritano, narrada no Evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos 25-37, bem se aplica ao Brasil atual. Narra a história de vítima de assalto, caída à beira da estrada, ferida, diante da qual passam indiferentes dois religiosos: um sacerdote e um levita. Porém, um samaritano, que era segregado pelos judeus, socorre e cuida do homem.

O principal problema brasileiro é a desigualdade social. Nossas ruas estão repletas de pessoas que mais parecem trapos humanos deitados à porta de prédios suntuosos e ao lado de produtos de ostentação, como carros de alto luxo.

O diálogo deve ter como tema prioritário o combate à desigualdade. Como abraçar o exemplo do samaritano diante de tantos caídos à beira da estrada.

O senhor foi um dos perseguidos pela ditadura militar de 1964, tendo inclusive sido preso político [em dois períodos: em junho de 1964 e de 1969 a 1973, dois dos quais entre presos comuns]. Como o senhor observa a convocação das Forças Armadas para cuidar da segurança pública do Rio de Janeiro e, talvez, como já indicaram, em outros lugares? É correto dizer que vivemos uma militarização da política?

Recorrer aos militares é admitir o fracasso dos políticos e querer atribuir a eles uma tarefa para a qual não são preparados.

O Rio precisa é de intervenção civil
Frei Betto

Os governantes deveriam renunciar, e eleições antecipadas serem convocadas. Enquanto não houver ações sociais nas favelas (educação, cursos profissionalizantes, esporte etc.) e combate à banda podre da polícia, nada haverá de mudar, infelizmente.

"Marielle é, hoje, uma mulher insepulta." É uma afirmação do senhor em artigo recente. Ela seguirá viva, diz.

Marielle se soma a tantos mártires da luta por direitos humanos, como Chico Mendes [líder seringueiro assassinado em 22 de dezembro de 1988, em Xapuri (AC)], Dorothy Stang [missionária que veio dos Estados Unidos, assassinada em 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (PA)] e frei Tito de Alencar Lima [religioso brasileiro preso e torturado pelo governo instaurado com o golpe de Estado de 1964; foi encontrado enforcado em Éveux (França), em 10 de agosto de 1974]. Ela é, sim, uma mulher insepulta, como [Mahatma] Gandhi [líder da independência da Índia, assassinado em 30 de janeiro de 1948, em Nova Déli] e [Martin] Luther King [ativista dos direitos humanos e da causa negra, assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis (EUA)], são homens insepultos. Estarão sempre vivos na memória de quem abraça os valores pelos quais deram a vida.

O jornal "The Washington Post" estampou em manchete de primeira página a foto dela, dizendo que se tornou um "símbolo global". Milhares foram às ruas no Brasil para protestar conta a morte dela. De que se constitui esse símbolo, na sua visão? Tem gente que critica, vendo uso político da morte. O senhor concorda?

Nada mais imbecil do que afirmar que há uso político da morte dela. O mito da neutralidade foi há tempos sepultado, inclusive nas ciências. Em tudo há política. Marielle encarnava temas priorizados nas pautas políticas atuais: mulher, negra, homossexual e de esquerda, ousava denunciar os abusos da polícia nas favelas. Bastava um item destes para torná-la referência histórica após seu bárbaro assassinato.

Quem matou Marielle, na sua opinião? Com que objetivos?

Aqueles que se sentem incomodados com as bandeiras que ela encarnava e defendia. Nunca prestaram atenção nestas palavras de Jesus: "Se calarem as suas vozes, as pedras gritarão" (Evangelho de Lucas, 19, 38-40). Agora somos todos(as) Marielle!

Marielle coloca a defesa da dignidade humana, do respeito à vida, como grande questão. Uma articulação entre cidadãos se abre como possibilidade de novas conexões, com vistas a melhorar a cidadania e a participação política das pessoas, a partir de sua morte?

Até o assassinato de Chico Mendes não se dava a devida importância à questão ecológica no Brasil. O sangue derramado por ele fez brotar o tema. O mesmo ocorrerá com as bandeiras defendidas por Marielle. Elas terão, de cara, grande peso nas eleições deste ano.

O senhor é um dos petistas históricos, de primeira hora, dos movimentos sociais que deram base para o partido. Participou, inclusive, do primeiro governo de Lula, em 2003 e 2004 [como assessor especial do presidente da República e coordenador de mobilização social do programa Fome Zero]. Olhando de hoje, o senhor acredita que poderia ter ajudado mais ficando no governo? Quais foram, com os olhos de agora, os piores erros do partido?

Jamais fui filiado a qualquer partido político. A mim são atribuídas atividades que nunca desempenhei. Toda a minha análise crítica dos 13 anos do governo do PT --que considero os melhores de nossa história republicana-- está contida em meus livros "A Mosca Azul - Reflexões sobre o Poder" e "Calendário do Poder", ambos editados pela Rocco.

Embora os governos do PT tenham inibido a inflação, aumentado a renda dos mais pobres, criado fatores de inclusão, como o ProUni [programa de bolsas universitárias] e o sistema de cotas [raciais e econômicas], instalado o Mais Médicos [programa para aumentar a capilarização do atendimento médico, alcançando municípios do interior], apurado os crimes da ditadura com as Comissões da Verdade, facilitado o crédito aos mais pobres etc., eles falharam ao não promover reformas estruturais, como a política (da qual hoje o PT é vítima), e priorizar o acesso da população aos bens pessoais (celular, carro, linha branca etc.), quando deveria ter priorizado o acesso aos bens sociais (educação, saúde, saneamento, transporte etc.).

O PT formou mais uma nação de consumistas que de protagonistas políticos e sociais. Não se fez a alfabetização política de nosso povo
Frei Betto

Não me arrependo de ter deixado o governo. Hoje sou um feliz "ING": "Indivíduo Não Governamental".

Buscando talvez a autocrítica, não se esperava demais do PT e de Lula no poder? Não havia ali, com os governos petistas, certos ideários salvacionistas, da chegada de um salvador para redimir o Brasil? Não foi demais esperar que a classe operária nos levasse ao paraíso?

Se houve esse sentimento religioso, dele não partilhei. Desde os primeiros dias de governo, escrevi em artigos para jornais que havíamos chegado ao governo, mas não ao poder. O poder nem sempre quer ser governo. Ele reside nos bancos, nas grandes empresas, nas multinacionais.

Porém, eu esperava que o PT fosse coerente com as três bandeiras emblemáticas de sua fundação: ser o partido de organização da classe trabalhadora, ser o partido da ética e ser o partido de reformas estruturais.

O senhor escreveu a respeito do deslumbre com o poder, do "picado" pela mosca azul, no livro de 2006 que o senhor citou, "A Mosca Azul". Qual teria sido o antídoto para a picada de tão arguto inseto, no caso de Lula e do PT? A propósito, a nova picada da mosca azul seria uma nova candidatura de Lula?

O antídoto teria sido o PT procurar assegurar a governabilidade "por baixo", com os movimentos sociais que estão na sua origem e são os responsáveis pelas quatro eleições vitoriosas do PT à Presidência.

Quem deixa a Presidência, após dois mandatos, com 87% de aprovação, não tem o direito de ficar de pijama em casa vendo TV frente à situação caótica na qual se encontra o Brasil.

Betto e a lição de Jesus Cristo: "Se calarem as suas vozes, as pedras gritarão"

O senhor é um religioso da vida modesta, da pregação, do sacrifício. Por que Lula não foi esse exemplo de austeridade e simplicidade? Lembro aqui a figura hoje lendária de Pepe Mujica [presidente do Uruguai de 2010 a 2015] e seu Fusca, como exemplo de nosso continente.

Essa é uma pergunta que só Lula pode responder.

A possibilidade de Lula ser preso tem quais significados, do ponto de vista do senhor? O PT trata o caso como perseguição e Justiça seletiva. O que o senhor pensa?

Até agora não vi nenhuma prova convincente apresentada contra Lula. Como confessou um promotor da Lava Jato, "não temos provas, apenas convicções"...

Estranho que líderes de outros partidos, comprovadamente criminosos, com gravações e documentos, continuem tranquilamente exercendo seus mandatos políticos.

A Lava Jato, ao se partidarizar, perdeu sua credibilidade jurídica e ética
Frei Betto

O senhor é a favor da revisão da prisão em segunda instância? Sua revisão não alimenta a percepção histórica de que a Justiça só vale para o pobre, que rico nunca vai preso?

Sou a favor de uma reforma completa em nosso Código Penal, de modo que a lei impeça detenções provisórias por mais de cinco dias (valendo para todos os presos, inclusive comuns), ponha em liberdade todos os presos detidos há mais de seis meses sem julgamento em primeira instância, mantenha em reclusão domiciliar os condenados em segunda instância e em cárcere os condenados com recursos esgotados em todas as instâncias.

Qual é o futuro político de Lula e do PT? Há perda de protagonismo? Não seria positiva a projeção de outras forças à esquerda?

Há, sim, alternativas na esquerda, como o PSOL e a candidatura a presidente do Brasil de Guilherme Boulos [um dos líderes do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto]. Só o resultado das urnas mostrará qual o futuro político do PT. Lamento que ele tenha abandonado o trabalho de base, o que reduziu consideravelmente aquela militância aguerrida que varava a noite em campanhas políticas.

O governo Temer, cuja legitimidade é contestada desde o impeachment, tem algo a ser destacado, negativo ou positivo? Temer tem alguma chance de se reeleger? Lembro aqui que o poder da caneta e da influência de um presidente é quase ilimitado no Brasil.

Quero muito que Temer seja candidato. Para se dar conta de seu real lugar na história política do Brasil.

E, sendo candidato, Temer ajudará a dividir ainda mais os votos da direita, o que favorecerá a oposição

Há um clamor em parte da sociedade por soluções fortes, imediatas. É um viés autoritário explícito, alimentado em grande parte pelo sentimento de que todos os políticos são corruptos. O capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), por exemplo, está em segundo nas pesquisas. Defende projetos considerados ultraconservadores. Como o senhor observa esse sentimento latente se tornando explícito?

A direita saiu do armário e a esquerda entrou... Bolsonaro é um avatar sem futuro. Não tem apoio da grande mídia, do sistema financeiro e das Forças Armadas. Não sobrevive ao primeiro debate presidencial.

A crescente participação de denominações religiosas nas eleições mostra que a religião representa um projeto político. Como o senhor analisa esse avanço da religião sobre a política, de um ponto de vista histórico? Não é de hoje que a Igreja Católica também busca dominar a pauta geral do país.

As igrejas sempre procuraram interferir na política brasileira. Os mais espertos são os neopentecostais, que estabeleceram uma estratégia de ocupação do Poder Legislativo e, agora, do Executivo. Breve chegarão ao Judiciário.

Sou pela laicidade do Estado e contra a confessionalização da política, o que a Igreja Católica fez na Idade Média e resultou em tragédia. O trabalho de base, que os partidos progressistas deixaram de fazer nas últimas duas décadas, abriu o espaço ocupado agora pelos evangélicos conservadores.

Hoje, talvez mais do que nunca, circulam informações que não são checadas, outras deliberadamente falsas. Todos falam, mas quase ninguém escuta ou se entende. Como podemos contemplar esse cenário, essa confusão e trazê-la para um universo mais legítimo? Como acertar o discurso de modo a contemplar quem se considera fora do jogo? Como dar essa escuta?

É preciso promover a alfabetização política de nossa população. Esclarecer os jovens a respeito do que significaram 21 anos de ditadura militar no Brasil [1964-85]. Abrir a mente dos oprimidos para que reconheçam as causas da opressão, como propôs Paulo Freire [educador, defensor do ensino da autonomia como base da transformação do país; morreu em 1997, aos 75 anos]. E, sobretudo, organizar em movimentos sociais os marginalizados e excluídos.

O educador Paulo Freire: ensino da autonomia

Sobre as eleições de 2018, o que o senhor espera? O processo volta a dar uma legitimidade que muitos julgam perdida desde o impeachment de Dilma Rousseff? O senhor prevê renovação? Deveria haver renovação?

Prevejo que o Congresso eleito será tão conservador quanto o atual, embora de caras novas. E, considerando a multiplicidade de candidatos de direita, e a enorme abstenção desde já sinalizada, acredito que será eleito um candidato progressista, de oposição ao governo Temer e de tudo de negativo que ele representa. E fico com o lema que me guia: Guardar o pessimismo para dias melhores!

O que o senhor gostaria de ver realizado no Brasil? Aquele sonho que te movimenta?

Meu sonho é ver um Brasil com menos desigualdade social, sem miséria, e pleno respeito aos direitos humanos. Ninguém escolhe ser pobre. Todo pobre é, de fato, um empobrecido. Fruto da loteria biológica, porque nenhum de nós escolheu a família e a classe social nas quais nasceu. Você e eu poderíamos ser filhos de uma faxineira do Complexo do Alemão e de um pai desempregado e alcoólatra. Sem recursos para ter acesso à educação. Nesse caso, talvez estaríamos hoje com um fuzil nas mãos protegendo uma boca de fumo. É preciso acabar de vez com a loteria biológica.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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